sábado, 9 de maio de 2009

Capítulo II - A Vara Criminal

A vara criminal foi uma surpresa, uma decepção e me causou uma boa dose de sofrimento. Muito tempo depois eu pude perceber que o aprendizado que eu tive lá foi único e que eu não teria em nenhum outro lugar.

A primeira coisa que aprendi foi que, na política e na micro-política, pedido efetuado por escrito vale menos do que pedido efetuado verbalmente.

Explico: quando alguém é nomeado para um cargo público, deve apresentar alguns documentos no setor de recursos humanos do órgão antes de tomar posse e começar a trabalhar. No meu caso, eu disse para o funcionário desse setor que eu gostaria de trabalhar em uma vara “de falência”. O funcionário me respondeu que não seria eu quem escolheria a vara em que iria trabalhar, mas que eu poderia tentar obter um ofício de um juiz de uma vara “de falência” para obter essa designação, caso contrário seria para o local em que estivesse precisando mais de gente. Ele me disse ainda que era fácil obter tal ofício, porque é sempre vantajoso para a vara ter mais um funcionário.

Assim, antes do dia posse, eu fui ao Fórum João Mendes para conseguir o ofício. Lá chegando, vi um hall com diversos elevadores e um imenso quadro indicando qual vara está em qual andar. Não me lembro exatamente como aconteceu, mas em um dos andares encontrei uma sala pequena, como um letreiro “sala dos oficiais de justiça”. Bingo! Meus “colegas”: era ali mesmo que eu iria conseguir ajuda. Nessa sala havia três ou quatro homens. Eu expliquei que eu tinha sido aprovado no concurso de oficial de justiça e que gostaria de trabalhar em uma vara “de falência”. Eles ficaram surpresos com o fato de um garoto novo ter sido aprovado em um concurso que fora tão concorrido (330 candidatos por vaga), me parabenizaram e se dispuseram a me ajudar. E me explicaram:

- Aqui não existe vara de falência, elas correm nas várias cíveis. Nós todos somos oficiais da 4ª. Vara Cível. Mas lá o quadro já está completo.

Eles então me orientaram para procurar o escrivão-diretor de alguma outra vara cível. Foi exatamente o que fiz. Não lembro qual vara foi, mas fui muito bem atendido por uma escrivã-diretora que, com muito jeito, explicou por telefone ao juiz a situação, começando com “Dr. Fulano, desculpe incomodar, estou aqui com um rapaz que foi aprovado no concurso...”.
Juiz “tem moral”, pensei, no sentido de que tem autoridade perante os funcionários. Depois contei esse fato para meu pai, que disse que eu deveria mesmo fazer faculdade de Direito e concurso para juiz.

Obtive o ofício e levei para o setor de recursos humanos. Achei que a coisa estava resolvida e que eu era muito esperto, porque “mexi os pauzinhos” e iria trabalhar onde eu queria.

No dia da posse foi realizado um “treinamento” ministrado por uma pessoa simpática, mas que nada disse a respeito do trabalho de oficial de justiça. Nesse dia conheci o Carlos Alberto Camargo, que no ano seguinte iria ser meu colega de turma na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. No fim do dia, descobri que eu tinha sido designado para uma vara criminal. Outras pessoas foram para varas cíveis, para varas de fazenda pública etc. Perguntei para o funcionário o que tinha acontecido e ele me respondeu que todo mundo apresentou ofício e que por isso a lotação acabou sendo de acordo com a necessidade de cada vara. Voltei arrasado para casa.
No dia seguinte, fui trabalhar no local em que fora designado, a 14ª. Vara Criminal do foro central. Na época, as varas criminais do foro central estavam no centro da cidade, no Fórum Ministro Mário Guimarães.

Chegando no cartório da 14ª. Vara Criminal, fui recebido pela escrevente-chefe responsável pela relação com os oficiais de justiça. Era uma pessoa extremamente amável, de uns trinta ou quarenta anos, não me lembro exatamente (naquela época, se uma pessoa tinha trinta, quarenta ou cinqüenta anos era a mesma coisa para mim).

Aliás, com exceção da escrivã-diretora, de uma única oficial de justiça e de um outro funcionário que estava quase sempre embriagado, todas as pessoas que trabalhavam no cartório da 14ª Vara Criminal e na sala do juiz eram pessoas maravilhosas e foram durante todo o tempo muito gentis comigo. Até hoje guardo ótimas lembranças do convívio com o pessoal de lá e, depois que deixei de ser oficial de justiça, por muitos anos mandei cartão de natal e ano novo para eles.

Poderia ter sido diferente: quase todos os escreventes da 14ª Vara Criminal tinham feito o concurso para oficial de justiça, mas foram reprovados. Quando eu cheguei, um moleque de dezenove anos com cara de quinze, meio burguesinho, para ser oficial de justiça, correu o boato que eu era sobrinho de um desembargador e que não tinha passado no concurso coisa nenhuma, mas simplesmente sido nomeado. De nada adiantava meu nome estar na lista dos aprovados, o concurso teria sido fraudado e ponto final.

Naquela época já não havia mais a “central de mandados”, ou seja, cada vara tinha seus oficiais de justiça. Com a minha nomeação, o quadro da 14ª. Vara Criminal ficou completo, com dez oficiais de justiça. A cidade de São Paulo foi dividida em onze regiões, conforme as páginas do guia de ruas que utilizávamos. Os mandados do centro seriam distribuídos igualmente para todos oficiais, que teriam, cada um, uma das outras dez regiões da divisão efetuada.

Eu fiquei com uma parte da zona sul: era um “retângulo” que, na largura, abrangia três páginas do guia e, no comprimento, umas oito. Abrangia a parte sul da linha norte sul do metrô, a região da Paulista, o Bexiga, o Itaim, Pinheiros, o aeroporto de Congonhas, a divisa com Diadema etc. Era uma região pequena, mas com um grande volume de serviço. Embora a boa parte dessa região fosse habitada por pessoas de classes média e alta (inclusive milionários), era uma região com muitos cortiços e favelas. A opinião generalizada de que em São Paulo a pobreza e a miséria estão apenas nas regiões mais afastadas é falsa, como será visto ao longo deste livro. Também é falsa a idéia de que as pessoas que cometem crimes são normalmente pessoas das classes baixas, o que também abordarei neste livro. Certamente a diversidade da minha região contribuiu para me dar uma boa visão, embora apenas empírica, do problema da criminalidade em São Paulo. Além disso, quando algum oficial da zona sul (que abrangia pela nossa divisão também zona oeste) entrava de férias, os mandados da área de oficial em férias eram distribuídos entre os demais oficiais da zona. Portanto, eu conheci todos os bairros e todas as favelas da zona sul e da zona oeste de São Paulo, incluindo o Morumbi, o Capão Redondo, o Jardim Ângela e outros lugares famosos ou não tão famosos, pelo bem e pelo mal.

Fui apresentado ao juiz titular da vara, um sujeito de uns quarenta anos (ou cinqüenta, sei lá). Ele me parecia uma pessoa séria, trabalhadora e rígida, como evidenciava seu sobrenome: Marcial. Por razões que eu nunca soube, ele era chamado de Dr. Maciel, embora todos os escreventes escrevessem o nome dele corretamente. O “Doutor Maciel” tocava a vara muito bem e os processos andavam, o que significava, é claro, muito trabalho para os oficiais de justiça. Ele saiu de lá um pouco antes de mim e nunca mais ouvi falar nele.

Nesse dia fui apresentado a um outro oficial de justiça meio gordo, muito gente boa, de uns cinqüenta ou sessenta anos, que tinha parte dos dentes da boca e cheirava fortemente a cigarro. Ele me levou para fazer uma intimação a um advogado no centro da cidade para eu começar a aprender o jeito da coisa (naquela época, no processo criminal, os advogados eram intimados pessoalmente, pelo oficial de justiça).

Ele era o que poderia ser chamado de “puta velha”, em razão da experiência. Meu deu as seguintes dicas a respeito de como eu deveria proceder:

· Não ser nem arrogante nem humilde demais;
· Sempre chamar o bandido de Senhor: isso o surpreende e faz com que ele lhe respeite;
· Pode deixar o mandado, mas nunca com a cópia, para o advogado assinar, caso não se encontre o advogado na hora (com exceção de determinados advogados, que o procedimento era outro, como veremos no Capítulo __);
· Na intimação, deixar o advogado colocar a data do dia seguinte, para ele ter um dia a mais de prazo;
· Nunca aceitar dinheiro ou favor de advogado, réu, testemunha, ou de quem quer que seja;
· Não confiar na polícia e não esticar papo em delegacia.

Com exceção dessa última parte (conversar na delegacia), segui a risca essas orientações.

Continua...

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