sábado, 20 de fevereiro de 2010

CAPÍTULO I - A primeira favela. O lado pobre da rica cidade de São Paulo

Desci do ônibus em uma avenida de um bairro pobre, chamado Americanópolis, do qual eu nunca tinha ouvido falar, mas que iria ser muito familiar no futuro. O ônibus tinha saído do metrô Jabaquara, última estação da linha norte-sul (que hoje se chama “linha azul”), no sentido sul. Segui o roteiro traçado, orientado pelo guia de ruas da cidade de São Paulo.
O sol tinha aparecido e estava alto. O tempo começava a esquentar.
Era a minha primeira diligência como oficial de justiça: eu estava perdendo o cabaço naquele dia. Aliás, estava perdendo o cabaço duplamente: era a primeira vez que eu saía sozinho para cumprir um mandado e era a primeira vez que eu andava no meio de um bairro pobre da periferia de São Paulo. Por isso me lembro de cada detalhe desse dia.
Passei por uma rua sem asfalto e com casas de alvenaria, quase todas pintadas, mas a maioria com tinta desbotada. Algumas casas estavam apenas com o reboco, a espera de uma pintura que talvez jamais viesse; outras estavam com tijolo aparente.
A rua fedia a esgoto. Mais tarde eu iria saber que esse não era o cheiro da favela, mas apenas de um bairro pobre. Sim, o cheiro da favela é mais intenso, especialmente em um dia quente como aquele. Havia algumas crianças brincando na rua, que tinham cheiro de manteiga.
Continuei seguindo por aquela rua, que não era o local em que eu tinha de fazer uma intimação. De repente, a rua acabou: virou um barranco, comido pela erosão das chuvas, mas com casas dos dois lados. Desci o barranco, e duas pessoas me olharam. Ouvi um comentário: “deve ser um cobrador”... Outra pessoa respondeu “profissão desgraçada”.
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CAPÍTULO II - O concurso público: de filhinho de papai (adolescência) a Oficial de Justiça (fase adulta).

Eu nunca me considerei um filhinho de papai ou um playboy. Mas eu morava na região da Paulista, tinha feito todos os estudos em escola particular e nunca tinha trabalhado. Como se dizia na época, eu “trabalhava” na VASP – Vagabundos Anônimos Sustentados pelo Pai (VASP era uma companhia de aviação pertencente ao Estado de São Paulo que foi “privatizada” e faliu algum tempo depois).
Para alguém que fosse pobre, para alguém que morava na Zona Leste ou na periferia de São Paulo, eu simplesmente era um playboy ou burguesinho em razão de ser de classe média ou em razão do lugar da cidade em que vivia.
O fato é que eu estava longe de ser um desses adolescentes enturmados, com uma galera grande, que fazem altas farras e têm grana para gastar. Meu pai sempre deixava claro que eu teria que me virar para um dia ter um emprego decente. Não faltava nada na minha casa, mas dinheiro para o lazer era algo muito limitado. Além disso, o fato de estar há pouco tempo em São Paulo ainda me deixava deslocado.
Minha mãe era dona de casa e meu pai era engenheiro mecânico e atuava na área de projetos. A crise do petróleo de 1973 e a recessão econômica dos anos 80 atingiram com maior intensidade os profissionais que dependiam diretamente do crescimento econômico. Nos momentos de retração econômica, ninguém planeja construir novas fábricas, ampliar a capacidade produtiva ou aumentar a produção. Eu nasci em 1970, em Belo Horizonte, e me mudei para o Rio de Janeiro em 1974 quando meus pais se casaram. Em 1978, em razão da existência do Pólo Petroquímico de Camaçari (BA), meu pai foi transferido para Salvador (BA). Lá ainda havia trabalho para um engenheiro de projetos.
Além do fantasma do desemprego, a década de 80 foi marcada pelo chamado arrocho salarial implementado pelo regime militar, sob a batuta do Ministro Delfim Neto. Funcionava assim: para combater a inflação crescente, o governo estabelecia índices de reajuste dos salários, inclusive os do setor privado, em percentuais inferiores aos da inflação do mês anterior. O objetivo era reduzir paulatinamente o poder de compra de compra da classe média assalariada, de modo a baixar a demanda e diminuir a inflação. Evidentemente, isso provocava mais recessão e piorava as condições de vida da população como um todo. Eu era adolescente nos anos 80 e os Decretos-lei nº 2.045 e 2.064, que instrumentalizavam juridicamente a política de arrocho salarial da Ditadura, estão marcados até hoje na minha mente. Foi em razão dessa política que minha adolescência foi caracterizada por uma vida espartana: eu tinha escola, meu pai tinha um carro usado, uma casa financiada e passávamos o ano inteiro juntando dinheiro para visitar meus avós no natal. Fora isso, não tinha nenhum luxo. Eu gostava de comer bacon, mas raramente podia tê-lo à mesa. Fico imaginando que esse deveria ser o padrão de vida de um adolescente na Alemanha Oriental...
As coisas melhoraram um pouco quando, em 1985, clique aqui para continuar...

CAPÍTULO III - A vara criminal

A vara criminal foi uma surpresa, uma decepção e me causou uma boa dose de sofrimento. Muito tempo depois, pude perceber que o aprendizado que tive lá foi único e que eu não teria em nenhum outro lugar.
A primeira coisa que aprendi foi que, na política e na micro-política, pedido efetuado por escrito vale menos do que pedido efetuado verbalmente.
Explico: quando alguém é nomeado para um cargo público, deve apresentar alguns documentos no setor de recursos humanos do órgão antes de tomar posse e começar a trabalhar. No meu caso, eu disse para o funcionário desse setor que eu gostaria de trabalhar em uma vara “de falência”. O funcionário me respondeu que não seria eu quem escolheria a vara em que iria trabalhar, mas que eu poderia tentar obter um ofício de um juiz de uma vara “de falência” para obter essa designação, caso contrário seria para o local em que estivesse precisando mais de gente. Ele me disse ainda que era fácil obter tal ofício, porque é sempre vantajoso para a vara ter mais um funcionário.
Assim, antes do dia posse, eu fui ao Fórum João Mendes para conseguir o ofício. Lá chegando, vi um hall com diversos elevadores e um imenso quadro indicando qual vara está em qual andar. Não me lembro exatamente como aconteceu, mas em um dos andares encontrei uma sala pequena, como um letreiro “sala dos oficiais de justiça”. Bingo! Meus “colegas”: era ali mesmo que eu iria conseguir ajuda. Nessa sala havia três ou quatro homens. Eu expliquei que eu tinha sido aprovado no concurso de oficial de justiça e que gostaria de trabalhar em uma vara “de falência”. Eles ficaram surpresos com o fato de um garoto novo ter sido aprovado em um concurso que fora tão concorrido (330 candidatos por vaga), me parabenizaram e se dispuseram a me ajudar. E me explicaram:
- Aqui não existe vara de falência, elas correm nas várias cíveis. Nós todos somos oficiais da 4ª. Vara Cível. Mas lá o quadro já está completo.
Eles então me orientaram clique aqui para continuar...

CAPÍTULO IV - Os bandidos, as vítimas e as testemunhas

Encontrar bandidos soltos nas diligências não era fácil. A maioria dos bandidos para os quais eu levei citações e intimações estavam presos. Como teremos um Capítulo específico para falar de delegacias e presídios, vou tratar aqui dos bandidos soltos, ou melhor, dos réus soltos: temos de presumir que todos são inocentes até o trânsito em julgado da condenação!.. A partir de agora, portanto, não irei usar o vocábulo bandido, mas sim o vocábulo réu.
A maioria dos processos criminais é precedido do inquérito policial, que reúne as provas contra determinado(s) pessoa(s) e embasa a denúncia do Ministério Público. Isso significa que quando eu recebia um mandado de citação (ato do juiz que chama o réu ao processo para se defender), na maior parte dos casos, o réu já sabe que o processo existirá.
Assim, quase sempre eu não encontrava o réu no seu endereço, pois ele já tinha sumido.
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