sexta-feira, 22 de maio de 2009

Parcial do Capítulo III - Bandidos, vítimas e testemunhas

...mais uma parte do Capítulo III...

Nem sempre os réus eram pessoas de classe baixa. Uma vez fui a uma casa de classe média para citar um réu. Tratava-se de uma pessoa que teria, digamos, exagerado ao dar um corretivo físico na enteada. A mãe da menina me recebeu e estava indignada, não com o padrasto que espancou sua filha, mas com a mãe do namorado da filha, que era a pessoa que tinha levado o caso à polícia. Estavam presentes a mãe indignada, o padrasto envergonhado e a menina constrangida. E eu, querendo apenas colher a assinatura do réu e ir embora o mais rápido possível.
Mas não foi fácil, a mãe na menina não me deixou sair e dizia:

- Às vezes ela (e apontou para a menina) também me bate, essas coisas acontecem, não é para parar na delegacia. Agora a mãe do namorado dela está numa boa e nós estamos ferrados! Você não acha isso um absurdo?

Fiz cara de paisagem como quem diz “quem sou eu para dizer o que está certo ou errado. Eu não acho nada, muito pelo contrário”...

Ela continuou tagarelando enquanto eu me dirigia para a porta, com o mandado já cumprido. Achei que era muito improvável que a menina pequena e magrinha que eu tinha visto pudesse espancar ou mesmo bater na mãe ou no padrasto. Mas se tem uma coisa que eu aprendi como oficial de justiça foi não duvidar de nada...

Alguns dias depois fui intimar a tal mãe do namorado, que era testemunha do caso. Também era uma casa de classe média, que deveria ter uma piscina, porque ela me recebeu de maiô, um traje de banho que algumas mulheres usavam naquela época, especialmente as gordas (embora não fosse o caso). Como sempre acontecia, a testemunha me pediu orientação a respeito do que ela deveria fazer. Na verdade, eu deveria apenas explicar o conteúdo do mandado, no caso, intimação para depoimento pessoal em audiência relativo ao processo tal, no dia tal, no Fórum Ministro Mário Guimarães, situado no Viaduto Dona Paulina, nº 80. Mas invariavelmente as pessoas queriam mais informações. Nesse caso, a mãe do namorado quis saber se o padrasto da menina estaria presente na audiência. Eu disse que provavelmente estaria, mas não tinha certeza (era verdade). Ela perguntou o que deveria fazer. Minha resposta foi, óbvio, que testemunha não precisa de advogado, mas que era poderia consultar algum advogado, inclusive caso houvesse interesse em constituir um assistente de acusação (na verdade, isso não seria possível, mas eu não sabia). Ela me respondeu “mas aí tem que pagar!...”. Eu disse que sim e, mandado cumprido, caí fora.

Citar réus e intimar vítimas e testemunhas de um mesmo caso era algo comum. Outro caso interessante envolvendo violência doméstica ocorreu em um conjunto de casas pobres situado na Consolação. Eu tinha de citar um réu e cheguei pela manhã no endereço indicado. Bati à porta e ninguém respondeu. Apareceu a vizinha que, em tom malicioso, me disse:

- Essa hora ela ainda não chegou...

Eu respondi:

- Não estou procurando ela, estou procurado ele, o senhor Fulano de tal. Será que ele se encontra?

A vizinha então me disse que ele estava preso no 4º Distrito Policial, que era perto de lá. No caso, o procedimento era me dirigir até o endereço informado para cumprir o mandado. Lá chegando, porém, fui informado que ele já tinha sido levado para um presídio. Ótimo, porque nesse caso eu não iria fazer a citação, pelos motivos que veremos no Capítulo __.

Algum tempo depois, com outro mandado, voltei ao mesmo endereço. Desta vez, o mandado era de intimação, para ela e não para ele. A mocinha estava dormindo quando eu cheguei. Ela estava de camisola, me convidou para entrar e, como sempre acontecia, me pediu explicações a respeito do processo. Ela era a vítima do caso. O réu, pessoa com a qual ela morava, teria colocado o revólver na cabeça dela e ameaçado matá-la, além, é claro, de ter lhe dado uns bons “petelecos”. A mocinha era, digamos, uma pessoa que exercia a profissão mais velha do mundo. Tentei explicar que ela era a vítima de um processo criminal e seu depoimento tinha sido pedido pelo promotor do caso. Foi uma tarefa difícil: ela simplesmente não entendia como poderia estar no processo contra a pessoa que, ao seu ver, era seu marido!

Ela me perguntou se eu teria encontrado o “marido” dela, o réu do processo. Eu disse que não, e contei que tinha sabido que ele estava preso por informação da vizinha. Ela então me respondeu:

- Essa fofoqueira. Foi por causa dela que eu briguei com meu amor.

Confesso que por essa eu não esperava: o cara senta a porrada na mulher e a culpa e da vizinha que a ajuda!

O fato é que eu tinha que terminar meu trabalho, que se resumia a colher a assinatura da vítima no mandado e entregar a papeleta com o nome dela, hora e local da audiência. O problema era explicar a ela o que era e como chegar até o fórum. Ela não entendia ou fingia não entender.

A cena, então, era esta: eu estava sentado em um colchão no chão junto com uma prostituta de classe baixa, que me olhava do jeito que as mulheres olham quando estão interessadas em um homem... Acho que é por isso que se diz “no Brasil, traficante é viciado e puta goza”! Não sei se esse ditado é verdade ou mentira, se é bom ou ruim, se é um elogio à alegria do povo brasileiro ou uma crítica à falta de profissionalismo supostamente existente nestas terras tropicais. O fato é que, mais uma vez, eu só queria colher a assinatura da rapariga e ir embora. Nessa altura do campeonato, ela tinha discretamente deixado a camisola subir um pouco, ficando com as pernas à mostra, enquanto eu fingia que nada percebia e desenhava um mapa no verso da papeleta para que ela pudesse chegar até o fórum no dia da audiência.

Algum tempo depois, por coincidência, eu estava lendo alguns processos no cartório quando me deparei com a sentença do caso. O réu tinha sido absolvido, simplesmente porque a vítima foi categórica na audiência ao dizer que nada tinha acontecido... Eu fiquei imaginando o que sente o Promotor em uma situação dessas: o cara estuda cinco anos em uma faculdade, rala à beça para passar no concurso, e como prêmio tem que denunciar um sujeito que espancou a mulher. Essa mulher na hora da audiência diz que é tudo mentira: o juiz julga improcedente a denúncia e todo o trabalho que o promotor teve com o caso vai por água abaixo. Já o cara que deu uns petelecos na mulher volta para casa e ela o recebe com, digamos, os braços abertos...
Quem é a vítima nesse caso: a mulher que foi espancada, a vizinha reputada como fofoqueira ou o promotor que trabalhou à toa? Possivelmente todos, inclusive a sociedade que paga os custos da máquina judiciária.

Continua....

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