domingo, 19 de julho de 2009

O Carandiru e outros presídios (continuação)

... Continuação de O Carandiru e outros presídios.


Em um dado momento, nós estávamos intimando um grupo de “justiceiros”. O funcionário, que estava tranqüilo demais simplesmente porque estava realizando seu trabalho diário, soltou a seguinte frase em voz alta o suficiente para ser ouvida fora da sala:

- Tá precisando de uns “justiceiros” lá no meu bairro, porque tem muito bandido.

Justamente nessa hora estava chegando presos de um outro pavilhão, que perceberam na hora que nós estávamos com “justiceiros” na sala.

O funcionário que estava trazendo esses presos (que não estavam algemados, porque ninguém fica assim no presídio) percebeu que poderia dar merda e brecou imediatamente a entrada dos presos na sala.

Eu vi um justiceiro ficar branco de medo. Parecia que o cara iria desmaiar. O funcionário que estava na sala comigo se levantou da cadeira rapidamente e foi até a porta. Disse em tom imperativo:

- Ninguém entra nem sai da sala!

Os presos que estavam do lado de fora ficaram se olhando, como quem pergunta o que deveria ser feito naquele momento. Com exceção dos “justiceiros” (óbvio), o mais amedrontado era eu, porque eu já tinha lido alguma vez que na hora que dá merda no presídio, a primeira coisa que é feita pelos presos é obrigar o refém a trocar de calça com ele. Depois disso tudo pode acontecer.

Nós estávamos em grande desvantagem numérica: eu e dois funcionários. Do lado de fora, além dos presos trazidos pelo funcionário que sabiam que a sala estava com um grupo de “justiceiros”, havia um número imenso de outros presos trabalhando. Se desse merda, eu, que não era conhecido como funcionário no presídio, seria confundido com um preso pela Polícia Militar, caso algum preso tomasse a minha calça.

Um dos presos do grupo que estava do lado de fora deu um passo à frente, em uma expressão desafiadora, em direção à porta da sala. O funcionário que estava comigo gritou com ele:

- Já mandei voltar, porra!

Nessa hora outro preso puxou o preso que tinha dado um passo à frente pelo ombro. Eu ouvi alguém gritar algo como “pára que vai dar merda”, não sei se foi o funcionário ou outro preso.

Nisso chegaram não sei de onde outras pessoas sem calça caqui e mandaram suspender temporariamente as intimações. Os presos do grupo que estava do lado de fora foram levados para outro local e somente iriam ser intimados ao final. Os “justiceiros” foram “escoltados” por alguns agentes para fora da sala, em direção às suas celas.

Nessa altura eu estava, digamos, um pouco nervoso com o que tinha presenciado. Olhei para o funcionário. Ele estava calmo e fez um comentário absolutamente trivial. Na hora eu fiquei na dúvida se ele estava fingindo ou se estava realmente calmo, como se a situação em nenhum momento tivesse saído do controle. Eu então perguntei:

- É todo dia assim?

Ele me respondeu, quase dando risada, percebendo meu humor alterado:

- É que não pode misturar “justiceiros” com os outros presos, pode dar merda.

Eu fiz cara de quem diz “isso é óbvio” e insisti na pergunta. Ele então me disse:

- Oficial, isso que você viu não foi nada!..

Foi aí que ele me explicou a história dos “caceteiros”, de que quando vai ter rebelião os “bons funcionários” ficam sabendo antes etc. Só nesse momento eu percebi que, realmente, não havia a menor possibilidade de eu virar refém no Carandiru, simplesmente porque naquele dia as coisas estavam tranqüilas e, sendo assim, os presos obedecem todas as ordens dos funcionários.

Ele me contou mais algumas coisas a respeito do Carandiru e recomeçamos as intimações. Foi nesse dia que vi um preso que não era pobre: era um advogado que tinha sido condenado por falsificação de escritura pública, relativo a um caso que eu tinha feito uma intimação em um belo apartamento situado no centro de São Paulo, próximo à Praça da República. Com exceção desse preso, todos os demais presos que vi naquele dia eram pessoas pobres. Fiquei com impressão de que, no Brasil, rico nunca vai para a cadeia. Na época, comentei essa impressão com um colega oficial de justiça e ele me disse, com uma certa amargura, que pensava a mesma coisa. Recentemente, com o “episódio Daniel Dantas”, lembrei-me disso.

Depois de fazer as intimações no Carandiru, fui para a Penitenciária do Estado. Fiz algumas intimações em uma sala grande, na qual estava um policial civil ouvindo umas histórias de um preso simpático, que me pareceram inverossímeis. O policial, porém, parecia estar se divertindo e acreditando nessas histórias. Lá foi bem tranqüilo e não houve qualquer incidente.

Fui até a enfermaria intimar um único preso. Essa ala da Penitenciária era formada por um corredor com celas em ambos os lados. Essas celas tinham duas camas cada uma e estavam com as portas abertas, simplesmente porque era a ala dos presos com AIDS, já em estado terminal.

Um funcionário estúpido, dando risada, entrou em uma das celas e retirou o cobertor de um preso que estava deitado em uma das camas, para que eu pudesse ver um preso aidético. O preso estava nu, com as pernas totalmente pretas, como se estivessem queimadas (imagine uma pessoa carbonizada: era exatamente o que vi).

Foi a cena mais chocante que presenciei como oficial de justiça. Não apenas a situação de um ser humano em completa desintegração física, consumido pela AIDS, como o ato do funcionário que parecia estar fazendo algo divertido. Eu estava vendo de perto o lado podre do mundo.

Cheguei até a cela em que eu deveria intimar um preso. Ele nada perguntou, somente assinou o mandado. Um outro funcionário comentou comigo que achava uma tolice correr um processo contra alguém nessas condições. Eu concordei, pois certamente o réu iria morrer antes do fim do processo.

Nesse dia fui para um outro presídio, que não me lembro o nome. A parte interessante desse outro presídio foi ter entrado junto com o motorista, que fez o papel do funcionário experiente do Carandiru: ele (e não eu) fez todas as intimações e orientou cada preso a recorrer ou a não recorrer, dependendo do caso. Novamente eu fiquei só do lado do sujeito, prestando atenção para aprender alguma coisa. O motorista me contou que há muito tempo ele fazia isso, que já estava acostumado.

Continua...

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