sábado, 4 de julho de 2009

Capítulo 2 - O concurso público: de filhinho de papai (adolescência) a Oficial de Justiça (fase adulta).

Eu nunca me considerei um filhinho de papai ou um playboy. Mas eu morava na região da Paulista, tinha feito todos os estudos em escola particular e nunca tinha trabalhado. Como se dizia na época, eu “trabalhava” na VASP – Vagabundos Anônimos Sustentados pelo Pai (VASP era uma companhia de aviação pertencente ao Estado de São Paulo que foi “privatizada” e faliu algum tempo depois).

Para alguém que fosse pobre, para alguém que morava na Zona Leste ou na periferia de São Paulo, eu simplesmente era um playboy ou burguesinho em razão de ser de classe média ou em razão do lugar da cidade em que vivia.

O fato é que eu estava longe de ser um desses adolescentes enturmados, com uma galera grande, que fazem altas farras e têm grana para gastar. Meu pai sempre deixava claro que eu teria que me virar para um dia ter um emprego decente. Não faltava nada na minha casa, mas dinheiro para o lazer era algo muito limitado. Além disso, o fato de estar há pouco tempo em São Paulo ainda me deixava deslocado. Eu até saía para alguma balada de vez em quando, tinha alguns amigos, mas nenhum deles também poderia ser enquadrado com “filhinho de papai” ou playboy. Eu não achava que a minha vida era boa. Mas tudo isso era uma questão de ponto de vista: algumas pessoas poderão achar que minha vida na época era fácil, tranqüila e feliz, com um lar estruturado e com pais que foram determinantes para minha formação moral e profissional.

Seja como for, eu achava que na Faculdade as coisas iria melhorar, o que era uma coisa motivadora. E eu queria estudar na USP. Para mim, era ponto de honra estudar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), não só porque era a melhor Faculdade de Direito do país (mais tarde voltarei a esse ponto, no Capítulo __), mas sobretudo porque era grátis. Pagar faculdade era algo que, definitivamente, não estava nos meus planos. Ao contrário do que todo mundo fazia, em 1988 eu me inscrevi apenas no vestibular para a USP (realizado pela FUVEST) e em nenhum outro. Seria USP ou nada. Morar em São Paulo e não estudar na USP era algo que para mim estava fora de cogitação: para mim, simplesmente não fazia sentido viver em uma cidade como São Paulo e não estudar na USP. Eu não gostava de São Paulo, mas, se morava lá, tinha de extrair algo de bom. E isso se traduzia em estudar na USP. Era a lógica que eu tinha na época.

Só que eu bombei (no vocabulário da época, bombar significava ser reprovado) no vestibular. Ironicamente, minha reprovação decorreu de uma nota ruim em redação. Foi um duro golpe, especialmente porque eu sempre ia bem em redação!

Logo depois de ter sido reprovado no vestibular e antes de ter aberto o concurso para Oficial de Justiça, eu tentei arrumar emprego em um banco e em um supermercado. Em ambos fui sumariamente descartado (por coincidência, hoje sou correntista desse banco e, quando oficial de justiça, levei uma sentença condenatória em razão de venda produto estragado para o gerente do supermercado).

Eu estava em casa, sem saber o que fazer, com o astral muito baixo. Hoje sei que, naquela época, eu estava próximo de uma depressão.

Aí abriu o concurso de Oficial de Justiça da Justiça Estadual, que só exigia o segundo grau. Eu comprei uma apostila que era composta basicamente das leis que cairiam no referido concurso (naquele tempo não existia internet) e de algumas regras gramaticais. Comecei a estudar, de modo a me familiarizar com os termos legais e compreender o sentido de cada artigo de lei. Foi um estudo assistemático, um singelo processo de acumulação de conteúdo sem qualquer base teórica. Pela primeira vez na minha vida, eu estudei a sério: ficava de manhã, de tarde e de noite decorando a apostila que eu tinha comprado na banca de jornal.

Tenho certeza absoluta que só estudei daquele jeito porque eu estava achando minha vida uma merda, porque eu estava me achando um bosta e a esperança que eu tinha era passar no concurso de Oficial de Justiça. Por isso costumo dizer que minha carreira começou no dia em que eu não passei no vestibular: foi em razão da minha reprovação no vestibular que eu fui estudar para o concurso de Oficial de Justiça.

Além disso, como quase todo menino dessa idade, eu não sabia exatamente que faculdade queria ou deveria cursar: o estudo e eventual trabalho como oficial de justiça iriam me possibilitar saber se a escolha de cursar direito era uma boa decisão.

Eu até gostei de estudar leis, mas um dia iria descobrir que a teoria do Direito é muito mais interessante. Estudo da lei seca, para quem nunca estudou direito, pode ser muito difícil. Eu comprei um dicionário jurídico, mas não ajudou muito. Por incrível que pareça, o que me fez compreender o significado de vários termos legais foi o dicionário comum. Uma amiga da minha mãe, que era advogada, também me ajudou nessa parte.

Felizmente, só foi divulgada a relação candidato por vaga em data próxima à da prova: como eram 330 candidatos por vaga, e eu teria desistido de estudar para esse concurso e optaria por estudar para o vestibular que, embora distante, me pareceria mais viável.

Mas o fato é que eu não desisti de estudar para o concurso de Oficial de Justiça. O dia da prova foi terrível: eu cheguei à escola em que deveria fazer a prova, vi um monte de gente, e calculei que nas outras escolas estava acontecendo o mesmo. Fiquei pensado porque eu passaria no concurso, se tinham tantos outros candidatos disputando as vagas... Para piorar, fui o primeiro da sala a terminar a prova, o que me deu a impressão de que eu tinha ido muito mal. Fui para casa com uma sensação de derrota, achando que mais uma vez eu iria perder o jogo.

Eu me lembro exatamente do dia em que saiu o resultado do concurso para Oficial de Justiça: no dia divulgado, eu fui para a porta do edifício em que funcionava a parte administrativa da Justiça Estadual, situado na Rua da Consolação, aguardar que o resultado fosse afixado na parte de fora do prédio. Lá estavam mais uns vinte ou trinta candidatos, todos ansiosos, e correu um boato que o número de vagas tinha aumentado de cem para mil. Nesse dia eu estava muito esperançoso, achando que tinha chances de ter passado.

Eu pulei (literalmente) de alegria quando vi meu nome na lista dos aprovados, entre os cem primeiros colocados. Voltei para casa, dei a notícia para minha mãe. Se tinha uma coisa que eu gostava era deixar minha mãe feliz. E meu pai ficaria com orgulho de mim.

Pouco tempo depois eu estaria trabalhando como oficial de justiça da 14ª. Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado de São Paulo. E, no mesmo ano, fui aprovado no vestibular da Faculdade de Direito da USP (em 19º lugar em mais de dez mil candidatos). E mais: com nota dez em redação! Fiquei com a alma lavada.

Também me lembro exatamente do momento em que vi o resultado do vestibular: era um fim de tarde, eu estava na Praça da Sé, tinha cumprido uns mandados no centro e comprei uma dessas edições especiais de jornal que trazia o resultado do vestibular. Em pé, no meio do barulho da multidão, procurei e achei meu nome na lista dos aprovados para o curso de Direito. Olhei de novo, para ter certeza de que era meu nome mesmo. Eu não podia acreditar que, em menos de um ano, minha vida tinha virado completamente.

Voltei para casa e minha mãe já tinha visto o resultado e estava radiante. Fui comemorar com meus pais no Terraço Itália, um ótimo restaurante situado na parte de cima do Edifício Itália, um local onde é possível ver uma grande parte da cidade de São Paulo. Eu comi um prato à base de carne de porco nesse dia. O Terraço Itália até hoje é um lugar especial para mim.

Mas nem tudo eram ou seriam flores. O trabalho como Oficial de Justiça não era maravilhoso. Era duro, difícil. Ter contato diário com a pobreza, com a miséria, com pessoas relacionadas com crimes, não era nem um pouco agradável. Foi por causa do trabalho que eu deixei de ser adolescente e passei à fase adulta. Assim, minha adolescência terminou a fórceps.

2 comentários:

  1. Muito legal e estimulante seu comentário. Realmente fiquei feliz por você. parabéns e felicidades.

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  2. Que história heim...
    eu amei, muito "estimulante" mesmo
    parabéns por todas as conquistas!.

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