quinta-feira, 2 de julho de 2009

11 - O Carandiru e outros presídios.

Quando eu comecei a escrever este livro, usei em um dos primeiros capítulos a expressão “naquele tempo não havia central de mandados” porque imaginava que a piora do trânsito em São Paulo teria de levar, necessariamente, à criação de central de mandados, tal como existe em Brasília e em outras cidades. Depois descobri que isso não aconteceu...

Contudo, já naquela época, para realizar citações e intimações de pessoas presas em presídios do Estado (não em delegacias), havia uma central de mandados: todo dia um oficial de uma das varas criminais iria cumprir os mandados de todas as varas em todos os presídios situados na Comarca da Capital (entenda-se: situados no Município de São Paulo).

Isso era chamado de rodízio: íamos com o motorista do fórum fazer as diligências nos vários presídios. Por esse motivo, conheci todos os presídios situados na cidade de São Paulo, bem como várias das suas peculiaridades. Evidentemente, visitar presídios não era nem um pouco agradável.

O famoso Carandiru, que foi tema de um filme exageradamente romanceado (mostrou o presídio como se fosse uma festa...) e hoje não mais existe, foi o primeiro presídio que eu visitei. Foi logo que comecei a trabalhar como oficial de justiça e, óbvio, não sabia muito bem como proceder. Fui orientado a não usar calça caqui no dia, pois esse é o uniforme que os presos utilizavam. Cheguei no horário estabelecido no fórum, apresentei-me ao motorista e fomos ao Carandiru. Lá chegando, fui recebido por um funcionário (agente penitenciário) que me informou que todas as intimações seriam realizadas em uma sala situada em um dos pavilhões. Ele me tratava a todo tempo por “Oficial” e eu estava achando ótimo: se o cara estava me tratando com respeito, é porque não estava percebendo a minha insegurança de Oficial de Justiça novato.

Fomos então nos dirigindo ao interior do Carandiru. Em um dado momento, antes de ingressar no primeiro pavilhão, seria necessário passar por uma revista, pois ninguém, exceto os agentes que faziam o policiamento, poderia ingressar com armas dentro dos pavilhões. A “revista” foi assim: um outro funcionário, que estava sentado em cima de uma mesa com cara de entediado, disse o seguinte:

- Você está com alguma arma aí?

Eu respondi que não e ele então disse que eu poderia entrar. Só isso, nada mais.

Uma porta após outra foi se fechando atrás de mim. Até aí, tudo bem. Eu estava tranqüilo, pois estava ao lado de um funcionário que conhecia muito bem o presídio. Ele me disse que os presos estariam de calça caqui. Logicamente, quem não estivesse de calça caqui seria funcionário do presídio.

Quando cheguei ao primeiro pátio, vi um grande número de pessoas trabalhando. Todas elas usando calça caqui. Não foi uma visão muito agradável.

Na verdade, toda vez que ocorria alguma rebelião nos presídios, os bons funcionários ficavam sabendo com alguma antecedência. Por “bons funcionários” entenda-se o seguinte: é aquele que não espancava os presos. Havia outra “categoria” de funcionários, chamados de “caceteiros”, exatamente porque regularmente davam cacete nos presos. Em caso de rebelião no presídio, os “caceteiros” eram os primeiros a sofrer a revanche dos presos, pois os “bons funcionários” tinham o tempo necessário para fugir e esperar a chegada do batalhão de choque da Polícia Militar resolver o problema.

O clima parecia tranqüilo naquele dia. O funcionário que estava comigo ia me explicando como as coisas funcionavam no Carandiru, que os presos trabalhavam para ter redução da pena etc. Naquele momento, eu ainda não estava com medo, a despeito do mar de calças caquis que estava ao nosso redor.

Chegamos a uma sala minúscula, onde receberíamos os presos. Teoricamente, eu é quem deveria fazer as citações e intimações. Mas quem fez tudo foi o funcionário do presídio, que conhecia muito mais do que eu a respeito do que seria o meu trabalho.

Ele ia falando com os presos algo como “bronca de seis anos em regime fechado” (“bronca”, na gíria penal, significa sentença condenatória ou pena de prisão), “levou uma bronca baixa, deu sorte” etc. Ele ia explicando e orientando os presos, inclusive quanto a possibilidade de recorrer das sentenças condenatórias. Explico: além do direito de o advogado recorrer, o preso pode, no ato em que é intimado, manifestar o direito de recorrer da sentença condenatória. E quase todos os presos perguntavam se era vantagem recorrer ou não. O funcionário foi orientando cada um deles e eu estava tranqüilo. Indiscutivelmente, eu estava ao lado de um “bom funcionário” e nem mesmo quando a pequena sala ficou com um número exagerado de presos eu fiquei com medo.

Mas, evidentemente, a coisa não poderia ser assim tão tranqüila. Tinha que dar alguma merda justamente no dia em que eu estava no Carandiru. É a famosa Lei de Murphy (“se algo pode dar errado, dará errado; se algo não pode dar errado, talvez dê certo”). E deu uma merdinha mesmo, felizmente rapidamente contornada em razão da experiência prática dos funcionários do presídio. Foi assim:

Todo mundo já ouviu falar nos famosos “justiceiros”: são pessoas que matam bandidos ou supostos bandidos. Como matar alguém é crime, mesmo que esse alguém seja bandido, salvo nas hipóteses de excludentes de ilicitude, os “justiceiros” podem acabar presos. E ser um “justiceiro” em um presídio é algo muito perigoso, pois os demais criminosos odeiam os “justiceiros”. Por isso os “justiceiros” ficavam separados dos demais presos. Em um presídio imenso como o Carandiru, com vários pavilhões, nem todo mundo sabia quem era quem. Presos de pavilhões diferentes poderiam passar anos se sequer se verem.

Em um dado momento, nós estávamos intimando um grupo de “justiceiros”. O funcionário, que estava tranqüilo demais simplesmente porque estava realizando seu trabalho diário, soltou a seguinte frase em voz alta o suficiente para ser ouvida fora da sala:

- Tá precisando de uns “justiceiros” lá no meu bairro, porque tem muito bandido.

Justamente nessa hora estava chegando presos de um outro pavilhão, que perceberam na hora que nós estávamos com “justiceiros” na sala.

O funcionário que estava trazendo esses presos (que não estavam algemados, porque ninguém fica assim no presídio) percebeu que poderia dar merda e brecou imediatamente a entrada dos presos na sala.

Eu vi um justiceiro ficar branco de medo. Parecia que o cara iria desmaiar. O funcionário que estava na sala comigo se levantou da cadeira rapidamente e foi até a porta. Disse em tom imperativo:

- Ninguém entra nem sai da sala!

Os presos que estavam do lado de fora ficaram se olhando, como quem pergunta o que deveria ser feito naquele momento. Com exceção dos “justiceiros” (óbvio), o mais amedrontado era eu, porque eu já tinha lido alguma vez que na hora que dá merda no presídio, a primeira coisa que é feita pelos presos é obrigar o refém a trocar de calça com ele. Depois disso tudo pode acontecer.Nós estávamos em grande desvantagem numérica:

continua...

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