Visitar favelas era algo recorrente. Em outra ocasião, eu estava na região da Av. Cupecê procurando uma favela, quando resolvi pedir informação para um senhor que eu encontrei na rua. Ele me pareceu simpático, perguntou se eu morava no bairro e eu respondi que não. Em seguida ele me explicou como eu deveria fazer para chegar à tal favela, que não estava muito próxima. Eu agradeci a ajuda e ele, secamente, disse-me a seguinte frase:
- Tinha que colocar fogo nessa favela, matar todo mundo.
Fiquei espantado. Ele estava falando sério. Um senhor calmo, simpático, prestativo, acabara de afirmar uma barbaridade: ser favorável ao extermínio de centenas de serem humanos, simplesmente porque viviam em uma favela situada no bairro em que ele morava. O senhor aparentava e com certeza era uma pessoa pobre, embora um pouco menos pobre que os favelados do bairro. Nesse dia compreendi claramente a diferença entre pobreza e miséria, especialmente a diferença entre um pobre e um miserável. E percebi que um pobre pode sentir ódio de um miserável.
Será que ele culpava os favelados pela criminalidade do bairro? Ou simplesmente lhe incomodava a existência de um lugar feio e imundo?
Eu não disse nada. Mas fiquei com a frase ecoando na minha cabeça. À noite, tive um pesadelo terrível, sonhei com os campos de concentração da Segunda Guerra Mundial.
Infelizmente, muita gente não deseja acabar com a pobreza, mas sim acabar com os pobres. Foi por causa desse fato que consegui compreender porque a extrema-direita, que defende os interesses das classes abastadas, paradoxalmente consegue apoio nas classes populares. Foi assim durante a época da Segunda Guerra e continua sendo assim até hoje.
No Capítulo __ irei falar das diligências em presídios, algo que era deprimente. Mas havia algo que me deixava muito mais deprimido do que visitar presídios: fazer diligências em hospitais públicos.
Felizmente foram poucas as ocasiões em que fui intimar alguma testemunha que trabalhava em hospital público. Lembro-me bem da primeira ocasião: eu fui a um hospital, situado em área nobre (!) de São Paulo, e me deparei com uma situação que até então só tinha visto na televisão. O hospital tinha filas quilométricas e, nos corredores, havia macas com doentes, alguns feridos, outros sendo atendidos, familiares chorando etc. Parecia, realmente, uma cena de um filme de guerra. Eu tinha de intimar um rapaz que era estagiário ou residente de medicina.
Eu sentia um forte cheiro de éter enquanto caminhava pelos vários setores do hospital perguntando pelo rapaz que eu deveria intimar (o caos era generalizado), até descobrir que o dia e hora do plantão dele era outro. Mas obtive também seu endereço residencial e optei, óbvio, por ir intimá-lo nesse endereço, para não ter de voltar no hospital. Eu poderia ter deixado um recado com alguém para ele, mas diante do que eu via, pareceu-me óbvio que o recado não seria entregue.
Considerando tudo o que vi nesse hospital, mudei radicalmente meu conceito a respeito do que seria uma “vida boa” e uma “vida ruim”. Na verdade, toda análise de “bom” ou “ruim” é comparativa: diante da situação desesperadora do hospital que eu vi, minha vida era simplesmente excelente, como o leitor verá em algumas outras partes deste livro.
Outra diligência interessante foi em uma unidade da FEBEM. Até então, eu imaginava que a FEBEM só cuidava de menores infratores. Pois bem. Eu fui fazer uma intimação de uma testemunha de defesa, cujo endereço era um local que aparentou ser uma casa residencial. Lá chegando, descobri que era uma casa que abrigava menores abandonados. A pessoa que eu tinha de intimar não estava no momento e eu fiquei conversando com um funcionário da FEBEM que me explicou o que era aquele local. Ele me disse que tratava-se de um dos poucos programas da FEBEM que realmente funcionava, que os menores ficavam abrigados em locais como aquele, que estudavam ou trabalhavam, e somente eram obrigados a sair de lá quando completavam 18 anos. Lamentavelmente, a mídia não divulga esse tipo de programa, os avanços que são paulatinamente feitos e os sucessos obtidos, optando por publicar apenas as mazelas das instituições, como se toda ação estatal se resumisse a corrupção e a desperdício de dinheiro público.
Eu aguardei por alguns minutos a chegada da testemunha. Era uma senhora amável, de uns quarenta anos, que recebeu a intimação, disse que o réu era uma boa pessoa e que iria testemunhar em favor dele.
Algumas diligências eram interessantes não pelo ato em si, mas pelo local em que elas deveriam ser realizadas. Em uma ocasião, fui a uma rua situada próxima ao bairro do Ipiranga, que era constituída de indústrias. Era um domingo e a rua estava completamente deserta. A paisagem era cinzenta e o único barulho era do vento. Fui caminhando pela rua, um pouco frustrado porque provavelmente não acharia ninguém no local, mas ao mesmo tempo curioso com o local inusitado, sentindo que era como se eu estivesse em um filme europeu, daquele tipo que eu via na Mostra de Cinema de São Paulo. Ao final, constatei que o número da rua indicado no mandado não existia. Nesse caso, bastaria certificar esse fato e devolver o mandado.
Uma diligência que me marcou profundamente foi realizada em uma casa linda, situada na Chácara Flora, um bairro residencial de São Paulo. Eu cheguei ao local e fui atendido por uma moça feia e desengonçada, que tinha o rosto cheio de espinhas. Perguntei pela testemunha, a moça feia me respondeu que ela não estava naquele momento, mas que iria chegar daí a pouco tempo. Não me lembro o motivo, mas ela me disse que o local era uma república de estudantes. Eu disse o seguinte, realmente surpreso:
- Puxa, nunca vi uma república em uma casa tão bacana.
Até então, toda república de estudantes que eu tinha visto estavam em casas velhas e feias, normalmente muito bagunçadas, sejam masculinas ou femininas.
A moça desengonçada me disse que a casa era realmente boa, que tinha até piscina. E me convidou para conhecer a casa, seria justamente o tempo de a testemunha chegar.
Aceitei o convite só para ver uma república situada em uma puta casa. Entrei na casa e ela me levou direto ao jardim do fundo da casa, onde estava a piscina. Lá chegando, eu me deparei com uma cena maravilhosa, que jamais vou esquecer: um jardim muito bem cuidado, com duas garotas lindas tomando sol, as duas topless, que nem mesmo notaram a minha presença.
Eu fiquei doido para ir conversar com elas, mas só a feiosa me deu papo. Ela foi me falando da cidade delas (era uma cidade do interior), que elas estavam lá em São Paulo há pouco tempo, mas eu não conseguia prestar atenção. Só pensava nas duas beldades que eu tinha visto.
Fiquei na sala, infelizmente apenas com a moça feia e desengoçada. Deu uns trinta ou quarenta minutos, a testemunha não chegou e eu achei melhor não perder mais tempo lá. Deixei recado com todas as indicações para a testemunha comparecer à audiência e fui embora, com a visão do purgatório e do paraíso na minha mente...