Se o público comum que eu encontrava nas minhas diligências variava da classe E à classe A, o mesmo posso dizer dos advogados. Vi desde o advogado semi-analfabeto até o medalhão famoso.
Não é possível dizer como era o perfil ou o comportamento padrão dos advogados criminalistas que conheci, nem mesmo tentando generalizar. Alguns eram muitos jovens, outros muitos velhos; alguns eram ótimos de papo, outros carrancudos; tinha advogado que era político, advogado que só trabalhava no convênio da assistência judiciária gratuita, advogado com escritório do mais alto luxo, advogado que trabalhava em verdadeiras espeluncas, advogado que só defendia bandido rico, digo, réu rico etc. Alguns advogados usavam diversas artimanhas para atrasar ou anular o processo, outros faziam questão de agir de forma estritamente correta para adquirir ou manter o respeito perante os juízes. Tinha de tudo mesmo.
Os advogados mais cultos, em geral, não davam muito papo para mim. No máximo eram gentis e me parabenizavam por ser “tão novo e já oficial de justiça”... Alguns advogados, ao contrário, adoravam conversar e contar vantagem. Com esses era diversão na certa.
Uma vez eu fiquei conversando com um advogado brega e burrão a respeito de não sei o quê, quando começamos a divergir a respeito da localização da cidade de Itapevi. Eu falava que era depois de Carapicuíba e ele insistia que era antes. Diante do impasse, fomos consultar o mapa. Eu estava certo, mas ele não demorou nem um segundo e disse “tá vendo, cara, eu não disse que fica depois de Carapicuíba?!”. Eu achei muito engraçado alguém ser tão cara de pau por causa de uma bobagem dessas.
A relação dos oficiais de justiça com os advogados era amistosa. Nós sentíamos uma verdadeira admiração pelos advogados. Até porque muitos oficiais de justiça eram bacharéis em direito e tinham como meta um outro cargo público ou a advocacia privada.
Nessa época, de uma forma um tanto ingênua (mas natural considerando a minha idade), eu sonhava em ser advogado com escritório próprio no centro de São Paulo. Eu realmente me imaginava assim: já mais velho (entenda-se: “mais velho” era com uns trinta e cinco anos de idade, casado e com filhos...), em um belo escritório, recebendo os oficiais de justiça, e com uma secretária com idade para ser minha avó, para me trazer sanduíche e suco de laranja às quatro da tarde porque eu não poderia só trabalhar sem comer direito. Acredite se quiser: eu não sonhava com uma secretária gostosa com idade para ser minha sobrinha e que fosse me trazer whisky às seis horas da tarde... (De tudo que estou afirmando neste livro, acredito que essa seja a parte mais inverossímil, mas juro que é verdade!)
Uma minoria dos advogados dava muito trabalho. Explico: naquela época, os advogados eram intimados pessoalmente pelo oficial de justiça nos processos criminais e não pelo diário oficial. Como existe prescrição intercorrente no processo criminal, poderia ser estratégico para a defesa o prolongamento do processo. Uma das maneiras de fazer isso era evitando a intimação de qualquer ato processual a ser feito pelo oficial de justiça. O advogado, então, deixava ordem para a secretária falar com qualquer oficial de justiça que ele não estava no escritório.
A questão poderia ser simples se houvesse “intimação por hora certa”, segundo a qual o oficial de justiça, ao não encontrar o advogado em seu escritório, afirmasse o dia e hora em que voltaria ao local. Mas isso não existia juridicamente. O jeito era ir várias vezes ao local e receber a mesma resposta da secretária: “o doutor não se encontra neste momento”.
Mas nós oficiais de justiça também tínhamos nossos truques.
Havia um advogado não tão famoso nos meios acadêmicos, mas com uma grande clientela. Ele era muito conhecido dos oficiais de justiça, exatamente porque era impossível intimá-lo em seu escritório. Quando pegávamos um mandado com o nome dele ficávamos desesperados, sabendo que o trabalho seria terrível. Até que um dia alguém teve uma idéia que resolveu o problema.
Era o seguinte: em um dia de movimento grande no fórum, no começo da tarde, pegar o elevador e ir até o último andar. Descer pela escada, passando em cada vara para verificar se o tal advogado teria audiência naquele dia. Normalmente, em alguma das trinta varas criminais, haveria uma audiência do tal advogado e a intimação seria feita nessa hora e local.
Adotei esse procedimento uma vez e deu certo: foi quando conheci o tal advogado que era o pavor dos oficiais de justiça. O problema é que a notícia espalhou e todos os oficiais passaram a fazer a mesma coisa. Em um outro dia, eu e mais três ou quatro oficiais de justiça de varas diferentes estávamos à espreita na porta da sala de audiência esperando o tal advogado. E, óbvio, estávamos conversando alto, cada um contando as últimas aventuras. O secretário da audiência pediu que nós conversássemos mais baixo, porque o juiz já tinha reclamado. Ficamos com vergonha na hora, mas nesse exato momento surgiu o tal advogado, que não esperava ser abordado por um grupo de oficiais de justiça com mandados de intimação. Ele tentou fugir, mas nós o cercamos e todos cumprimos os mandados.
Mas nem sempre nós ganhávamos. Antes de termos adotado esse procedimento, o meio utilizado tinha se relevado ineficaz. Foi assim: eu fui várias vezes ao escritório do tal advogado, em datas e horários diferentes. Certificava no mandado cada dia e hora da diligência, bem como o nome e a descrição física da secretária que deu a informação. Feito isso, devolvi o mandado em cartório. O juiz, então, determinou a expedição de mandado intimação para o réu constituir novo defensor, tendo em vista que o oficial de justiça não conseguia encontrar o advogado atual. O réu, devidamente intimado, nomeou como defensor nada mais nada mesmo que a advogada que trabalhava com o advogado fujão!.. Com isso, o processo se alongou por um bom tempo, e eu continuei com o mico na mão, desta vez para intimar a advogada que também se escondia. Foi aí que passamos a intimá-los na hora de alguma audiência.
Às vezes era necessário adotar um método um pouco mais incisivo para conseguir cumprir mandado de intimação de advogado. Era assim: eu ia até a OAB, obtinha o endereço residencial do advogado, e ficava à espreita, de manhã cedo ou no final do dia, para intimá-lo na saída ou chegada de casa.
Raras vezes (eu me lembro de todas) havia tentativa de corrupção. Em uma delas aconteceu a coisa mais surpreendente possível. Um advogado me recebeu e pediu para colocar no mandado uma data muito superveniente. A praxe era colocar a data do dia seguinte, para o advogado ter um dia a mais de prazo. Embora já errada, era a prática comumente adotada e que eu seguia porque era a regra do jogo: o advogado não mandava dizer “que não estava” e nos recebia; em troca, ganhava um dia a mais de prazo. Certo ou errado, era assim que a coisa funcionava na prática. E não seria eu que iria mudar algo sedimentado e que não causava dano para a Justiça. Mas esse advogado queria um prazo muito maior, o que não estava dentro do padrão. Eu disse que não era possível.
Ele então abriu a pasta com várias notas de dinheiro vivo, parecia coisa de filme. Eu fiquei assustado com a ostensiva tentativa de suborno e disse secamente que iria certificar a intimação com a data do dia, sem nenhuma concessão. Ele viu que não seria possível conseguir nada além do que era comumente concedido e, visivelmente contrariado, assinou o mandado e colocou a data do dia seguinte.
Fiquei preocupado, com medo de sofrer alguma retaliação, pois o advogado parecia ser poderoso, a julgar pelo escritório luxuoso. Ele me levou até a porta, bateu no meu ombro, e me disse com um sorriso:
- Vá em frente, garoto!
Na hora eu não entendi nada. Não fiz o que o advogado queria e ele se despediu como de gostasse de mim... Muito tempo depois, entendi: ele realmente gostou da minha atitude de recusar ser subornado, mesmo que isso o tivesse prejudicado naquele momento. É que ele sabia que o adequado seria todo mundo agir corretamente, sem se submeter à corrupção.
Apenas uma vez um advogado me destratou, mas eu tive uma parcela de culpa. Foi um advogado que é famoso nos meios acadêmicos, talvez por ser filho de um jurista muito conceituado. Eu recebi o mandado e achei o máximo ter de intimar o tal advogado famoso. Eu era calouro na São Francisco e, por coincidência, ele iria dar uma palestra lá na semana seguinte.
No final da palestra eu fui, todo feliz, tietar o cara (lembre-se: eu era calouro) e levar o mandado de intimação. Para a minha surpresa, ele foi grosseiro e disse que só receberia a intimação no escritório.
Desapontado, perguntei ao juiz se o advogado poderia se recusar a receber o mandado fora do escritório. Ele ficou na dúvida, disse que o Código não falava nada a respeito e que era melhor eu tentar fazer a intimação no escritório, endereço que constava do processo e do mandado.
Comentei o ocorrido com um colega de faculdade, que me disse simplesmente isto:
- Esse cara só é famoso por causa do pai.
Fiquei sem saber se isso era verdade ou não. Seja como for, eu tinha de cumprir o mandado, que já tinha perdido todo o glamour em razão do comportamento nada gentil do advogado famoso. Fui até o escritório dele e não o encontrei. Foi aí que cometi um duplo erro:
Continua...