quarta-feira, 3 de junho de 2009

Vítimas e testemunhas (continuação)

...Continuação do Capítulo Bandidos, vítimas e testemunhas...


O fato é que as vítimas detestavam ser intimadas e enfrentar uma audiência com réu presente na sala da audiência. Reclamavam comigo disso, mas eu nada podia fazer. O pior de tudo era quando a vítima comparecia ao fórum, perdia uma tarde de trabalho por causa disso e, por qualquer razão, a audiência não se realizava. Quando não era designada nova data para a audiência ou quando a vítima não saía intimada, o oficial de justiça tinha de fazer a intimação e, é claro, ouvir novas reclamações da pessoa que tinha sido vítima de um crime e agora se sentia vítima da máquina judiciária. Eu só ouvia, nem mesmo me arriscava a concordar com as queixas, pois temia que a pessoa ficasse com mais raiva ainda.

Uma região que eu não gostava de ir era a do Aeroporto de Congonhas. Em uma das minhas primeiras diligências eu presenciei um assalto à mão armada no ponto de ônibus: dois caras em uma moto, o carona desce da moto com uma pistola prateada e leva a bolsa de uma mulher humilde. Eu fiquei atrás da pilastra do ponto de ônibus com medo do cara atirar.

Um dia recebi um mandado para intimar uma testemunha que morava na favela “Buraco Quente”, que se situava justamente naquela região. Mas não fiquei com medo, porque se tinha um lugar que eu me sentia seguro era no meio de uma favela: nenhum bandido iria fazer merda em um local onde todo mundo se conhece bem e vive junto.

Eu fui até a favela e perguntei pela sra. Fulana. Um senhor me levou até o barraco dela. Lá chegando, a filha da testemunha disse que ela não iria demorar. A menina deveria ter uns treze ou quatorze anos, talvez menos. Ela usava um vestido desbotado e rasgado. Nós estávamos na frente do barraco, em um lugar que tinha como vista um prédio que, na minha lembrança, era luxuoso.

Aqui eu fico na dúvida: visto de uma favela, qualquer prédio é luxuoso. Então eu não sei se o prédio era de classe média ou de classe média alta. Devia ser de classe média para baixo, porque ninguém de classe média alta vai morar do lado de uma favela. Seja como for, é única a perspectiva de ver da favela um edifício de apartamento (ainda que não fosse luxuoso, era obviamente anos luz melhor que a favela). Eu jamais irei esquecer essa imagem.

A menina perguntou se eu não queria sentar. Não tinha nenhum banco ou cadeira no local e eu me sentei no chão. Ela ficou meio sem graça por causa disso, e foi arrumar uma cadeira no barraco vizinho. Voltou com uma carteira escolar e eu sentei nela. Nisso chegou a irmã dela, que era mais nova. Eu fiquei conversando com a menina mais velha, mas tratando-a como quem trata uma criança. Então ela disse que no final de semana iria para a praia, completando de uma forma nada infantil:

- Vou usar um biquíni muito pequeno!..

E continuou com algumas frases do mesmo quilate. Naquela época o problema da pedofilia e da prostituição infantil não era noticiada em jornais. Eu tinha visto casos de estupro, todos eles entre pessoas da família (normalmente tio que abusava da sobrinha). Mas o tema não tinha a dimensão que tem hoje. Se fosse, eu teria saído correndo de lá imediatamente, sem cumprir o mandado, com medo de alguém ouvir a conversa da garota e achar que eu é que estava avançando o sinal. Com certeza eu iria preferir enfrentar o cara da pistola no ponto de ônibus!.. Ou arriscar uma certidão falsa, do tipo “a testemunha não é conhecida no local”... Mas como eu não vislumbrava qualquer perigo na conversa dela, achei até bonito ver o comportamento de uma menina na fase de transição para mulher e continuei conversando normalmente com ela.

Porém, ficou evidente que a minha conversa não estava como ela queria, pois ela disse a seguinte frase, com a amargura das pessoas que já sentem o peso da baixa condição social:

- O rapaz só gosta de moça rica.

Isso realmente me incomodou, porque não era verdade. Eu nunca tive preconceito com os pobres. Mas daí para tratar como mulher uma menina que ainda por cima era a filha da testemunha que eu deveria intimar vai uma grande diferença... Eu não me lembro se a menina era feia ou bonita, mas o fato é que, definitivamente, tratá-la de outro jeito estava fora de cogitação.

Meio constrangido, tentei mudar o rumo da prosa. Como a menina estava chateada porque realmente achou que eu não me interessei por ela porque ela era pobre, a conversa acabou. Eu comecei a desconfiar se a testemunha estava mesmo prestes a chegar. Decidi ir embora, deixando apenas os dados da audiência para a menina entregar à mãe. Comecei a preencher a papeleta e, por sorte, ela chegou nesse exato momento. Fiz a intimação e fui embora, com mais um mandado cumprido na minha pasta e mais uma experiência de vida.

Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário