sexta-feira, 26 de junho de 2009

Advogados, juízes e outras espécies da fauna judiciária

Se o público comum que eu encontrava nas minhas diligências variava da classe E à classe A, o mesmo posso dizer dos advogados. Vi desde o advogado semi-analfabeto até o medalhão famoso.

Não é possível dizer como era o perfil ou o comportamento padrão dos advogados criminalistas que conheci, nem mesmo tentando generalizar. Alguns eram muitos jovens, outros muitos velhos; alguns eram ótimos de papo, outros carrancudos; tinha advogado que era político, advogado que só trabalhava no convênio da assistência judiciária gratuita, advogado com escritório do mais alto luxo, advogado que trabalhava em verdadeiras espeluncas, advogado que só defendia bandido rico, digo, réu rico etc. Alguns advogados usavam diversas artimanhas para atrasar ou anular o processo, outros faziam questão de agir de forma estritamente correta para adquirir ou manter o respeito perante os juízes. Tinha de tudo mesmo.

Os advogados mais cultos, em geral, não davam muito papo para mim. No máximo eram gentis e me parabenizavam por ser “tão novo e já oficial de justiça”... Alguns advogados, ao contrário, adoravam conversar e contar vantagem. Com esses era diversão na certa.

Uma vez eu fiquei conversando com um advogado brega e burrão a respeito de não sei o quê, quando começamos a divergir a respeito da localização da cidade de Itapevi. Eu falava que era depois de Carapicuíba e ele insistia que era antes. Diante do impasse, fomos consultar o mapa. Eu estava certo, mas ele não demorou nem um segundo e disse “tá vendo, cara, eu não disse que fica depois de Carapicuíba?!”. Eu achei muito engraçado alguém ser tão cara de pau por causa de uma bobagem dessas.

A relação dos oficiais de justiça com os advogados era amistosa. Nós sentíamos uma verdadeira admiração pelos advogados. Até porque muitos oficiais de justiça eram bacharéis em direito e tinham como meta um outro cargo público ou a advocacia privada.

Nessa época, de uma forma um tanto ingênua (mas natural considerando a minha idade), eu sonhava em ser advogado com escritório próprio no centro de São Paulo. Eu realmente me imaginava assim: já mais velho (entenda-se: “mais velho” era com uns trinta e cinco anos de idade, casado e com filhos...), em um belo escritório, recebendo os oficiais de justiça, e com uma secretária com idade para ser minha avó, para me trazer sanduíche e suco de laranja às quatro da tarde porque eu não poderia só trabalhar sem comer direito. Acredite se quiser: eu não sonhava com uma secretária gostosa com idade para ser minha sobrinha e que fosse me trazer whisky às seis horas da tarde... (De tudo que estou afirmando neste livro, acredito que essa seja a parte mais inverossímil, mas juro que é verdade!)
Uma minoria dos advogados dava muito trabalho. Explico: naquela época, os advogados eram intimados pessoalmente pelo oficial de justiça nos processos criminais e não pelo diário oficial. Como existe prescrição intercorrente no processo criminal, poderia ser estratégico para a defesa o prolongamento do processo. Uma das maneiras de fazer isso era evitando a intimação de qualquer ato processual a ser feito pelo oficial de justiça. O advogado, então, deixava ordem para a secretária falar com qualquer oficial de justiça que ele não estava no escritório.

A questão poderia ser simples se houvesse “intimação por hora certa”, segundo a qual o oficial de justiça, ao não encontrar o advogado em seu escritório, afirmasse o dia e hora em que voltaria ao local. Mas isso não existia juridicamente. O jeito era ir várias vezes ao local e receber a mesma resposta da secretária: “o doutor não se encontra neste momento”.
Mas nós oficiais de justiça também tínhamos nossos truques.

Havia um advogado não tão famoso nos meios acadêmicos, mas com uma grande clientela. Ele era muito conhecido dos oficiais de justiça, exatamente porque era impossível intimá-lo em seu escritório. Quando pegávamos um mandado com o nome dele ficávamos desesperados, sabendo que o trabalho seria terrível. Até que um dia alguém teve uma idéia que resolveu o problema.
Era o seguinte: em um dia de movimento grande no fórum, no começo da tarde, pegar o elevador e ir até o último andar. Descer pela escada, passando em cada vara para verificar se o tal advogado teria audiência naquele dia. Normalmente, em alguma das trinta varas criminais, haveria uma audiência do tal advogado e a intimação seria feita nessa hora e local.

Adotei esse procedimento uma vez e deu certo: foi quando conheci o tal advogado que era o pavor dos oficiais de justiça. O problema é que a notícia espalhou e todos os oficiais passaram a fazer a mesma coisa. Em um outro dia, eu e mais três ou quatro oficiais de justiça de varas diferentes estávamos à espreita na porta da sala de audiência esperando o tal advogado. E, óbvio, estávamos conversando alto, cada um contando as últimas aventuras. O secretário da audiência pediu que nós conversássemos mais baixo, porque o juiz já tinha reclamado. Ficamos com vergonha na hora, mas nesse exato momento surgiu o tal advogado, que não esperava ser abordado por um grupo de oficiais de justiça com mandados de intimação. Ele tentou fugir, mas nós o cercamos e todos cumprimos os mandados.

Mas nem sempre nós ganhávamos. Antes de termos adotado esse procedimento, o meio utilizado tinha se relevado ineficaz. Foi assim: eu fui várias vezes ao escritório do tal advogado, em datas e horários diferentes. Certificava no mandado cada dia e hora da diligência, bem como o nome e a descrição física da secretária que deu a informação. Feito isso, devolvi o mandado em cartório. O juiz, então, determinou a expedição de mandado intimação para o réu constituir novo defensor, tendo em vista que o oficial de justiça não conseguia encontrar o advogado atual. O réu, devidamente intimado, nomeou como defensor nada mais nada mesmo que a advogada que trabalhava com o advogado fujão!.. Com isso, o processo se alongou por um bom tempo, e eu continuei com o mico na mão, desta vez para intimar a advogada que também se escondia. Foi aí que passamos a intimá-los na hora de alguma audiência.

Às vezes era necessário adotar um método um pouco mais incisivo para conseguir cumprir mandado de intimação de advogado. Era assim: eu ia até a OAB, obtinha o endereço residencial do advogado, e ficava à espreita, de manhã cedo ou no final do dia, para intimá-lo na saída ou chegada de casa.

Raras vezes (eu me lembro de todas) havia tentativa de corrupção. Em uma delas aconteceu a coisa mais surpreendente possível. Um advogado me recebeu e pediu para colocar no mandado uma data muito superveniente. A praxe era colocar a data do dia seguinte, para o advogado ter um dia a mais de prazo. Embora já errada, era a prática comumente adotada e que eu seguia porque era a regra do jogo: o advogado não mandava dizer “que não estava” e nos recebia; em troca, ganhava um dia a mais de prazo. Certo ou errado, era assim que a coisa funcionava na prática. E não seria eu que iria mudar algo sedimentado e que não causava dano para a Justiça. Mas esse advogado queria um prazo muito maior, o que não estava dentro do padrão. Eu disse que não era possível.

Ele então abriu a pasta com várias notas de dinheiro vivo, parecia coisa de filme. Eu fiquei assustado com a ostensiva tentativa de suborno e disse secamente que iria certificar a intimação com a data do dia, sem nenhuma concessão. Ele viu que não seria possível conseguir nada além do que era comumente concedido e, visivelmente contrariado, assinou o mandado e colocou a data do dia seguinte.

Fiquei preocupado, com medo de sofrer alguma retaliação, pois o advogado parecia ser poderoso, a julgar pelo escritório luxuoso. Ele me levou até a porta, bateu no meu ombro, e me disse com um sorriso:

- Vá em frente, garoto!

Na hora eu não entendi nada. Não fiz o que o advogado queria e ele se despediu como de gostasse de mim... Muito tempo depois, entendi: ele realmente gostou da minha atitude de recusar ser subornado, mesmo que isso o tivesse prejudicado naquele momento. É que ele sabia que o adequado seria todo mundo agir corretamente, sem se submeter à corrupção.

Apenas uma vez um advogado me destratou, mas eu tive uma parcela de culpa. Foi um advogado que é famoso nos meios acadêmicos, talvez por ser filho de um jurista muito conceituado. Eu recebi o mandado e achei o máximo ter de intimar o tal advogado famoso. Eu era calouro na São Francisco e, por coincidência, ele iria dar uma palestra lá na semana seguinte.

No final da palestra eu fui, todo feliz, tietar o cara (lembre-se: eu era calouro) e levar o mandado de intimação. Para a minha surpresa, ele foi grosseiro e disse que só receberia a intimação no escritório.
Desapontado, perguntei ao juiz se o advogado poderia se recusar a receber o mandado fora do escritório. Ele ficou na dúvida, disse que o Código não falava nada a respeito e que era melhor eu tentar fazer a intimação no escritório, endereço que constava do processo e do mandado.
Comentei o ocorrido com um colega de faculdade, que me disse simplesmente isto:

- Esse cara só é famoso por causa do pai.
Fiquei sem saber se isso era verdade ou não. Seja como for, eu tinha de cumprir o mandado, que já tinha perdido todo o glamour em razão do comportamento nada gentil do advogado famoso. Fui até o escritório dele e não o encontrei. Foi aí que cometi um duplo erro:
Continua...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Vítimas e testemunhas (continuação)

...Continuação do Capítulo Bandidos, vítimas e testemunhas...


O fato é que as vítimas detestavam ser intimadas e enfrentar uma audiência com réu presente na sala da audiência. Reclamavam comigo disso, mas eu nada podia fazer. O pior de tudo era quando a vítima comparecia ao fórum, perdia uma tarde de trabalho por causa disso e, por qualquer razão, a audiência não se realizava. Quando não era designada nova data para a audiência ou quando a vítima não saía intimada, o oficial de justiça tinha de fazer a intimação e, é claro, ouvir novas reclamações da pessoa que tinha sido vítima de um crime e agora se sentia vítima da máquina judiciária. Eu só ouvia, nem mesmo me arriscava a concordar com as queixas, pois temia que a pessoa ficasse com mais raiva ainda.

Uma região que eu não gostava de ir era a do Aeroporto de Congonhas. Em uma das minhas primeiras diligências eu presenciei um assalto à mão armada no ponto de ônibus: dois caras em uma moto, o carona desce da moto com uma pistola prateada e leva a bolsa de uma mulher humilde. Eu fiquei atrás da pilastra do ponto de ônibus com medo do cara atirar.

Um dia recebi um mandado para intimar uma testemunha que morava na favela “Buraco Quente”, que se situava justamente naquela região. Mas não fiquei com medo, porque se tinha um lugar que eu me sentia seguro era no meio de uma favela: nenhum bandido iria fazer merda em um local onde todo mundo se conhece bem e vive junto.

Eu fui até a favela e perguntei pela sra. Fulana. Um senhor me levou até o barraco dela. Lá chegando, a filha da testemunha disse que ela não iria demorar. A menina deveria ter uns treze ou quatorze anos, talvez menos. Ela usava um vestido desbotado e rasgado. Nós estávamos na frente do barraco, em um lugar que tinha como vista um prédio que, na minha lembrança, era luxuoso.

Aqui eu fico na dúvida: visto de uma favela, qualquer prédio é luxuoso. Então eu não sei se o prédio era de classe média ou de classe média alta. Devia ser de classe média para baixo, porque ninguém de classe média alta vai morar do lado de uma favela. Seja como for, é única a perspectiva de ver da favela um edifício de apartamento (ainda que não fosse luxuoso, era obviamente anos luz melhor que a favela). Eu jamais irei esquecer essa imagem.

A menina perguntou se eu não queria sentar. Não tinha nenhum banco ou cadeira no local e eu me sentei no chão. Ela ficou meio sem graça por causa disso, e foi arrumar uma cadeira no barraco vizinho. Voltou com uma carteira escolar e eu sentei nela. Nisso chegou a irmã dela, que era mais nova. Eu fiquei conversando com a menina mais velha, mas tratando-a como quem trata uma criança. Então ela disse que no final de semana iria para a praia, completando de uma forma nada infantil:

- Vou usar um biquíni muito pequeno!..

E continuou com algumas frases do mesmo quilate. Naquela época o problema da pedofilia e da prostituição infantil não era noticiada em jornais. Eu tinha visto casos de estupro, todos eles entre pessoas da família (normalmente tio que abusava da sobrinha). Mas o tema não tinha a dimensão que tem hoje. Se fosse, eu teria saído correndo de lá imediatamente, sem cumprir o mandado, com medo de alguém ouvir a conversa da garota e achar que eu é que estava avançando o sinal. Com certeza eu iria preferir enfrentar o cara da pistola no ponto de ônibus!.. Ou arriscar uma certidão falsa, do tipo “a testemunha não é conhecida no local”... Mas como eu não vislumbrava qualquer perigo na conversa dela, achei até bonito ver o comportamento de uma menina na fase de transição para mulher e continuei conversando normalmente com ela.

Porém, ficou evidente que a minha conversa não estava como ela queria, pois ela disse a seguinte frase, com a amargura das pessoas que já sentem o peso da baixa condição social:

- O rapaz só gosta de moça rica.

Isso realmente me incomodou, porque não era verdade. Eu nunca tive preconceito com os pobres. Mas daí para tratar como mulher uma menina que ainda por cima era a filha da testemunha que eu deveria intimar vai uma grande diferença... Eu não me lembro se a menina era feia ou bonita, mas o fato é que, definitivamente, tratá-la de outro jeito estava fora de cogitação.

Meio constrangido, tentei mudar o rumo da prosa. Como a menina estava chateada porque realmente achou que eu não me interessei por ela porque ela era pobre, a conversa acabou. Eu comecei a desconfiar se a testemunha estava mesmo prestes a chegar. Decidi ir embora, deixando apenas os dados da audiência para a menina entregar à mãe. Comecei a preencher a papeleta e, por sorte, ela chegou nesse exato momento. Fiz a intimação e fui embora, com mais um mandado cumprido na minha pasta e mais uma experiência de vida.

Continua...

O processo de elaboração continua...

Continuo escrevendo o livro. Neste momento tenho 36 páginas e imagino terminá-lo com umas 150. Os capítulos serão estes:

Advertência ao leitor.
1.A primeira favela. O lado pobre da rica cidade de São Paulo.
2.O concurso público: de filhinho de papai a Oficial de Justiça.
3.A vara criminal.
4.Os bandidos, as vítimas e as testemunhas.
5.Minha mãe, as mães dos bandidos e as mães das vítimas. Família, pobreza e criminalidade.
6.Investigadores de polícia, carteiros e cobradores de ônibus.
7.Advogados, juízes e outras espécies da fauna judiciária.
8.O dia em que, sem querer, eu plantei uma nulidade em um processo criminal.
9.O centro de São Paulo. O fórum e o elevador do fórum.
10.A corrupção na polícia e no Judiciário.
11.Dando “carteirada” como Oficial de Justiça.
12.O Carandiru e outros presídios. As delegacias de polícia.
13.Políticos, empresários e prostitutas.
14.Crime de rico e crime de pobre.
15.A parte boa de São Paulo.
16.A Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
17.A liberdade que o dinheiro proporciona.